Os rastros do terror em Moscou levam a Londres

Destroços do Crocus City Hall/ Moscou
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Por MARAT KHAIRULIN*

Dois dias após o ataque sangrento já reinava, entre a comunidade política e de inteligência russa, a opinião de que o Reino Unido (leia-se Mi6), estava por trás do ataque terrorista

A monstruosidade do ato terrorista no Crocus City Hall, nas proximidades de Moscou, no dia 22 de março, tem raízes muito profundas e terá consequências de longo alcance. Vamos aqui tentar traçar, aproximadamente, sua gênese, para entender o que o principal inimigo da Rússia está jogando contra ela, e que não são suas últimas forças, mas as cartas que segurou até o último momento.

Dois dias após o ataque sangrento já reinava, entre a comunidade política e de inteligência russa, a opinião de que o Reino Unido, ou melhor, o Mi6, estava por trás do ataque terrorista. Ele mostrava uma caligrafia bastante reconhecível para essa organização. É um fato indiscutível que todos os grandes ataques terroristas na Rússia no período pós-soviético, de Beslan a Dubrovka, tiveram, de uma forma ou de outra, origem britânica. Os líderes terroristas que dirigiram os militantes foram recrutados pelo Mi6, e, em alguns casos (como Basayev e Khattab), eles colaboraram abertamente com o Mi6.

Em contraste com esta opinião, a Grã-Bretanha fez questão de abrir uma janela óbvia nos seus principais meios de comunicação para uma organização chamada Vilayat Khorosan (um ramo do Estado Islâmico que opera no Afeganistão), que estaria por trás do ataque terrorista. Para os especialistas, esta postura aponta claramente em direção à versão que este caso particular agora também teria as digitais britânicas.

Aqui devemos dizer desde já que a história não é fácil, e é um tanto intrincado acompanhá-la, por isso descreveremos apenas algumas de suas linhas. No seu apogeu, o ISIS (ou Estado Islâmico) era um conjunto de gangues tribais unidas em especial por conta do financiamento britânico. Tanto o meliante Abu Omar al-Shishani (natural de Batirashvili, na Geórgia) quanto seu substituto, o tadjique Gulmurod Khalimov, eram reconhecidamente mercenários diretos do Mi6.

O âmbito das atividades do ISIS, como procurador dos britânicos, acabou por se tornar tão sério que começou a interferir na influência norte-americana no Oriente Médio e na Ásia Central, e o Reino Unido teve de reduzir parcialmente as suas operações para não irritar o hegemon (os Estados Unidos). E por um tempo, todos esses terroristas a serviço do Mi6 foram para as sombras. Alguns até foram declarados mortos.

Eles começaram a emergir novamente a partir da retirada dos Estados Unidos do Afeganistão. E foi então que o ISIS de Khorosan surgiu em cena. Trata-se, na verdade, de um aglomerado de senhores da guerra tribais Pashtun que haviam sido apoiados pelos britânicos. Foram os únicos que concordaram em combater os talibãs. E este é o ponto chave. Aqui estamos entrando na emaranhada geopolítica da Ásia Central.

A maioria dos países da região apoia os esforços do Talibã para pacificar o Afeganistão, esperando, desta forma, garantir sua própria segurança. Todos, exceto o Tadjiquistão. Que não consegue encontrar uma linguagem comum com o Talibã por conta do fato de que, sob a proteção deste último, opera uma série de organizações que são consideradas terroristas no Tadjiquistão. Foi a partir desta divisão que a Grã-Bretanha jogou todos esses anos, depois de os americanos terem deixado a região, buscando, com todas as suas forças, impedir o estabelecimento da paz na Ásia Central.

Para fazer isso, imediatamente após a retirada norte-americana, o recrutamento de tadjiques étnicos afegãos começou nas fileiras da gangue Vilayat Khorosan. Ou seja, o presidente tadjique Emomali Rahmon, que é muito sensível a essa questão e considera os tadjiques uma das maiores nações divididas do mundo, começou a indicar que o ISIS Khorosan seria parte dos seus. Assim, juntando-se no apoio aos talibãs, ele estaria traindo os interesses dos tadjiques.

Em outras palavras, ao apontar o dedo para o ISIS Khorosan – que, note-se, neste momento praticamente não existe como organização senão como um ajuntamento de gangues tribais –, a Grã-Bretanha tenta arrastar abertamente a Rússia para a Ásia. Essa é, depois do Cazaquistão, mais uma tentativa dos britânicos de impor à Rússia problemas na sua retaguarda. Mas isso é apenas parte do jogo. A segunda implicação não é menos interessante. E é mais explícita.

A sustentação política do próprio líder do ISIS, o tadjique Gulmurod Khalimov, sempre foi o Partido do Renascimento Islâmico do Tadjiquistão, declarado organização terrorista em sua terra natal. No início dos anos 2000 ele estabeleceu sua sede em… – adivinhem! – Londres. Às vésperas da saída dos americanos do Afeganistão, os britânicos decidiram acalentar os tadjiques e, em 2018, criaram a Aliança Nacional do Tadjiquistão (NAT), em Varsóvia, para onde aquele partido tinha transferido sua sede, e onde buscavam juntar os restos de todos os terroristas tadjiques que sobreviveram à derrota do ISIS.

A aliança foi liderada por Muhammadjon Kabirov, que seguira Gulmurod Khalimov durante toda a sua vida. O objetivo da criação de uma nova organização era simples: o Ocidente estava perdendo a guerra na Síria e era preciso estabelecer uma linha de fuga para os militantes oriundos do Tadjiquistão. O NAT serviria então como canal unificado para onde a Grã-Bretanha contribuiria com dinheiro, enquanto Kabirov e Khalimov se ocupavam com o tráfico de “carne” tadjique. Deve ser dito aqui que Khalimov foi nominalmente considerado morto a partir de 2017, mas há também uma segunda opinião de que ele foi simplesmente “removido” para as sombras depois que os americanos se voltaram mais decididamente contra o ISIS.

Em 2022, com o início da Operação Especial russa na Ucrânia, a chamada brigada Jabhat Al-Shamiya despontou como parte do corpo de mercenários na Ucrânia. Ou melhor, um de seus destacamentos que operavam na região de Aleppo. Esse destacamento é liderado por um comandante de campo (tadjique de origem), que é o braço direito de Gulmurod Khalimov. Tudo o que se sabe sobre ele é que seu apelido é Shusha, e ele é, por formação, professor de história. Há também uma versão de que ele é um dos muitos parentes de Khalimov.

Jabhat Al-Shamiya foi um dos principais destinatários do dinheiro britânico distribuído através da Aliança Nacional do Tadjiquistão (NAT). Um mês após o fracasso da contraofensiva ucraniana – talvez um pouco mais tarde, na virada de outubro para novembro –, Ilya Ponomarev, o líder político dos novos “vlasovitas” (Corpo de Voluntários Russos a serviço da Diretoria Principal de Inteligência da Ucrânia), reuniu-se com Muhammadjon Kabirov em Londres. Depois disso, várias outras reuniões foram gravadas entre ambos em Varsóvia, com funcionários do Mi6.

E agora presenciamos um ataque coordenado na região russa de Belgorod, pelos novos “vlasovitas”, e em Moscou, por militantes tadjiques. É de se acreditar que, mais cedo que tarde, será confirmada a filiação dos terroristas presos na Rússia com a Aliança Nacional do Tadjiquistão. Por que é relevante chegar até ela? É sabido que o recrutamento (em termos de pagamento de transporte e movimentação) na Rússia é realizado pela União Nacional de Migrantes do Tadjiquistão, membro da mesma aliança, que também é considerada uma organização extremista no seu país e na Rússia. A Aliança garante também a existência de uma rede de agentes adormecidos do Tadjiquistão e na Rússia. Os agentes são controlados pelo Mi6, que coordenou a criação da Aliança.

Em outras palavras, o Reino Unido passou a montar uma frente terrorista unida contra a Rússia assim que se tornou claro que a contraofensiva ucraniana tinha falhado e que a Ucrânia estava condenada. À sua maneira tradicional, o Reino Unido tentou enquadrar ou mesmo encurralar o hegemon.

Obviamente, o hegemon não gostou disso, e tentou alertar Moscou, buscando, ao mesmo tempo, não abrir mão do seu aliado mais próximo. Para ser sincero, essa história apenas confirma que, com aliados como esse, os Estados Unidos não precisam de inimigos. Mas isso não é tudo. Há também uma opinião que circula na comunidade política e de inteligência russa, sobre a qual não se comenta muito (mas que existe), de que os britânicos acabaram demonstrando um amadorismo flagrante nas suas ações, e agora todos estão congelados na expectativa de um desentendimento entre os aliados antirrussos.

Curiosamente, a primeira reação da Rússia ao ataque terrorista (ainda que isso possa ser uma coincidência) foi a de fazer o seu representante na ONU, Vassily Nebenzia, declarar que a Rússia não reconhecerá o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky como legítimo após o término do seu mandato. Sem reconhecimento de autoridade, é possível que imediatamente após seu último dia como presidente, Volodymyr Zelensky seja demonstrativamente “desnacionalizado”.

A não ser, é claro, que, antes disso, seus amigos britânicos o eliminem. Em antecipação a esse evento, é de ser esperar também que gente como Kyrylo Budanov (o chefe da Diretoria Principal de Inteligência da Ucrânia e, reconhecidamente, um agente a serviço do Mi6) e o ex-deputado russo Ilya Ponomarev (refugiado na Ucrânia, mentor de outras ações terroristas e também agente a serviço do Mi6) possam ir em breve ao julgamento de Deus.

*Marat Khairulin é correspondente de guerra e historiador militar russo.

Tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no canal Vestnik.


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